Em 2022, como também em 2023, António Guterres, secretário-geral da ONU, relembrou figuras da resistência negra e diz que “mentira da supremacia racial” está viva. Em causa está o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Tráfico Transatlântico de Escravos, que se assinala hoje, abordando (mais para cumprir calendário do que para agir em vez de reagir) o racismo.
António Guterres relembrou que por detrás de histórias de sofrimento e dor incontáveis, e de histórias de famílias e comunidades despedaçadas, há também histórias inspiradoras de coragem contra a crueldade dos opressores, tendo destacado figuras como Zumbi dos Palmares no Brasil, ou a rainha Ana Nzinga do Reino de Ndgongo, em Angola.
“Precisamos de contar essas histórias de resistência justa, de Zumbi dos Palmares no Brasil, à rainha Babá dos Quilombolas na Jamaica, à rainha Ana Nzinga do Reino de Ndgongo, em Angola, ou Toussaint Louverture de Saint-Domingue no actual Haiti”, disse o secretário-geral da ONU.
“Para racionalizar a desumanidade do comércio de escravos, os africanos eram retratados como menos do que humanos. Tropas racistas circularam amplamente, legitimados pela pseudociência e consagrados na lei. Mais de 200 anos desde o fim do comércio transatlântico de escravos, a mentira cruel da supremacia racial permanece viva hoje“, avaliou o secretário-geral.
De acordo com Guterres, o racismo encontrou uma nova amplificação nas “câmaras de eco online de ódio”.
“O comércio transatlântico de escravos marcou uma ruptura brutal na história africana e tem frustrado o desenvolvimento do continente por séculos. (…) Devemos reverter as consequências de gerações de exploração, exclusão e discriminação, incluindo as suas óbvias dimensões sociais e económicas através de marcos de justiça reparador”, avaliou.
“Reconhecer erros do passado, derrubar estátuas de traficantes de escravos e buscar perdão não pode desfazer os crimes. No entanto, às vezes, eles podem ajudar a libertar o presente — e o futuro — das algemas do passado”, acrescentou o secretário-geral da ONU.
António Guterres aproveitou ainda para reforçar que fora do continente africano, pessoas de ascendência africana estão entre as últimas a beneficiar de cuidados de saúde, educação, justiça e qualquer outra oportunidade.
“A diáspora africana enriqueceu sociedades ao redor do mundo. E ainda assim, ainda enfrenta marginalização, exclusão e viés inconsciente, a sua vida ainda obscurecida pela sombra persistente da escravidão”, frisou o português, apelando à união contra o racismo.
MUNDO BRANCO. MUNDO MULTIRRACIAL
No artigo “Africanos devem protestar contra o racismo incubado de António Guterres”, William Tonet (Director do Folha 8/TV8) mostra e demonstra que o Secretário-Geral da ONU deveria ser julgado pelo, no mínimo, crime de inacção na guerra movida pela Rússia contra a Ucrânia. Esse texto deveria, aliás, passar a ser de leitura obrigatória na ONU.
Em Outubro de 2016, a manchete do Boletim Oficial do regime de sua majestade o rei de Angola de então, José Eduardo dos Santos, dizia tudo: “Portugal agradece apoio”. Apoio, neste caso, à escolha de António Guterres como secretário-geral da ONU.
Em Luanda, a então secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Teresa Ribeiro, agradeceu “o apoio activo de Angola” na candidatura de António Guterres: “Portugal está grato a tudo quanto Angola tem feito nesse domínio”.
Antes, no dia 21 de Setembro, o antigo primeiro-ministro de Portugal agradecera já o apoio de Angola à sua candidatura ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas, elogiando (é o preço a pagar pelo apoio) o papel do país no contexto internacional.
António Guterres, que foi igualmente alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, falava à rádio pública do MPLA, sobre o apoio de Angola, salientando que tem sido “um instrumento muito importante” para que tenha possibilidades de vencer.
“Gostaria de exprimir toda a minha gratidão e o meu apreço pelo que tem sido a posição do Presidente José Eduardo dos Santos, do Governo e povo de Angola, a solidariedade angolana tem calado muito fundo no meu coração”, referiu Guterres mostrando que, afinal, bajular é uma questão genética em (quase) todos os socialistas – e não só – portugueses.
“Agora compete aos Estados-membros, entre os quais Angola, decidir, mas não queria deixar de exprimir esta grande gratidão em relação à posição angolana, que calou muito fundo no meu coração”, realçou Guterres que deverá ter beijado a mão a muitos dos seus apoiantes, inclusive a de Ângela Dorothea Merkel que, recorde-se, queria que Guterres fosse dar uma volta ao bilhar grande.
Pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros da altura, Georges Chikoti, Angola disse que “esta eleição é muito importante para África, para a CPLP, para Angola e para a comunidade internacional em geral. O engenheiro Guterres tem sido um lutador incansável pelas causas importantes da comunidade internacional, em particular dos refugiados”.
Chikoti acrescentou: “Temos a certeza que nessa qualidade (secretário-geral) ele vai olhar muito para África e para Angola em particular, queremos esperar que ele consiga promover alguns quadros importantes do continente africano, particularmente da lusofonia”.
O que se passou com os africanos na guerra na Ucrânia, como afirma o William Tonet, comprova o nível de estima e consideração que António Guterres não tem pelos africanos… pretos.
Enquanto candidato e por necessidade material de recolher apoios, António Guterres confundiu deliberadamente Angola com o regime, parecendo (sejamos optimistas) esquecer que, por cá, existem angolanos a morrer todos os dias, que temos há 47 anos um dos regimes mais corruptos do mundo e que somos um dos países com o maior índice mundial de mortalidade infantil.
Numa das suas visitas a Angola, António Guterres disse que, “por Angola estar envolvida em actividades internacionais extremamente relevantes, vejo-me na obrigação de transmitir pessoalmente essa pretensão às autoridades angolanas”.
Pois é. Esteve até no Conselho de Segurança da ONU. E, pelos vistos, isso basta. O facto – repita-se todas as vezes que for preciso – de ter tido durante 38 anos um Presidente da República nunca nominalmente eleito, de ser um dos países mais corruptos do mundo, de ser o país onde morrem mais crianças… é irrelevante.
“Naturalmente como velho amigo deste país, senti que era meu dever, no momento em que anunciei a minha candidatura a secretário-geral das Nações Unidas, vir o mais depressa possível para poder transmitir essa intenção as autoridades angolanas”, sublinhou António Guterres.
Guterres tem razão. É um velho amigo do regime. Mas confundir isso com ser amigo de Angola e dos angolanos é, mais ou menos, como confundir o Oceanário de Lisboa com o oceano Atlântico. Seja como for, confirmou-se que a bajulação continua a ser uma boa estratégia. Nesse sentido, António Guterres não se importou de ter considerado José Eduardo dos Santos como um ditador… bom, de agora considerar João Lourenço como um ditador… excelente.
António Guterres sabe que todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos há africanos que morrem de barriga vazia e que, em Angola, 70% da população passa fome;
António Guterres sabe que 45% das crianças angolanas sofrem de má nutrição crónica, e que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos;
António Guterres sabe que no “ranking” que analisa a corrupção, Angola está entre os primeiros, tal como sabe que a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens, ou seja, o cabritismo, é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos e que o silêncio de muitos, ou omissão, deve-se à coacção e às ameaças do partido que está no poder desde 1975.
António Guterres também sabe que o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.
Mas também é evidente que António Guterres sabe que ser amigo de quem está no poder, mesmo que seja um ditador, vale muitos votos.
Seja como for, António Guterres não deve gozar com a nossa chipala nem fazer de todos nós uns matumbos. A paciência dos africanos em relação aos dirigentes mundiais tem limites.
«Portugal que tantas ditaduras apoia e subvenciona, sabe bem o que é isso e a França que explora crianças nas minas, do Leste congolês a zona do Sahel, também o sabe. Porque os interesses económicos falam mais alto que a vida humana. De Pretos! Mulatos ou brancos, nascidos nas nossas Áfricas, no quadro da nossa multirracialidade, menos discriminadora que a europeia e americana», afirma William Tonet, acrescentando: «Para desgraça dos que acreditam num mundo sem discriminação e racismo, mesmo na crise, em plena guerra, na Europa, impera na mente de alguns os resquícios colonialistas e de superioridade, na lógica da “lei de George Orwell: “todos somos iguais mas uns são mais iguais do que outros”.»